quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

De chata pra emocionante

Se você pensa que estudante de medicina é aquela estereotipia de um sujeito que alguns dias veste-se impecavelmente e, em outros, mais parece que esqueceu o pijama no corpo, com a maquiagem à prova d'água de olheiras no rosto e de aspecto cansado, mas sempre de pé, fazendo perguntas e anotando a aula........ você está completamente correto, é isso mesmo que somos.

Atualmente, a estudante de Medicina que sou está no nono período da faculdade, foram 4 anos que podem ter passado rápido a olhos distraídos, mas cada período cursado durou exatamente o tempo que cada período tem.

O presente período é um misto de, primeiramente, incertezas, por estrear um novo ciclo - o internato! -, felicidades, pela oportunidade de lidar mais frequentemente com o paciente, fortalecendo o aprendizado na relação médico-paciente, e criando mais confiança durante as consultas, e decepções, quando a realidade não condiz com suas expectativas, e há dias em que o aprendizado não nos alcança, e voltamos pra casa com uma sensação de incompletude.

O internato da minha faculdade funciona da seguinte forma: a turma que antes era composta por 50 alunos é dividida em 3 grupos de aproximadamente 17 pessoas, os quais rodam em diferentes cenários da prática médica, alternando em especialidades. No meu atual rodízio, estou nas especialidades: Ginecologia e Obstetrícia, Dermatologia e Genética Médica.

Contudo, neste texto, pretendo falar somente sobre o dia de hoje em Genética Médica, o meu 2º dia de atendimento nesta especialidade pouco falada.

No turno da manhã, eu e outras 4 colegas atendemos um paciente de 3 anos com investigação de Transtorno do Espectro Autista - TEA.   Pode-se investigar, porém o diagnóstico de Autismo não é dado antes de a criança completar os 6 anos de idade, porém medidas terapêuticas já podem ser tomadas ao indício de atraso de desenvolvimento neuropsicomotor.
À tarde, tivemos aula teórica com o professor médico Pediatra Neonatologista Geneticista. Como os horários do rodízio não são muito respeitados, pois somos liberados depois da hora muitas vezes, além do assunto ser dado massivamente, muitos alunos reclamam deste rodízio. De fato, é bem cansativo! Mas isso não vem ao caso... Falemos de coisas boas! Nesta aula de hoje, falamos sobre síndromes cromossômicas e um dos transtornos apresentados foi a Síndrome de Down, causada pela trissomia do cromossomo 21 (por isso que o dia da Sd de Down é dia 21 de Março!!!! Descobri isso hoje também hahaha). Tal aula, densa como é, poderia tocar alguém? Se emocionar com Genética? O quê??

Ah, mas não se trata apenas de genética. O professor começou a falar sobre a Síndrome, que não é sempre que a habilidade intelectual é afetada, alguns fazem faculdade, têm relacionamentos normais, etc etc etc. E um ponto que chama minha atenção é que esse professor não se limita às adversidades de qualquer doença ou condição, ele aponta também as qualidades positivas, singularidades. Apontou, por exemplo, que crianças com a Síndrome alcoólica Fetal estão sempre alegres, felizes, sabia? E pacientes com Sd de Down adoram e precisam de carinho, cuidado, adoram abraçar os outros, e que em uma das consultas um paciente olhou para ele e disse: "Eu te amo" no meio da consulta, "do nada". E isso tudo me emocionou, porque é muito genuíno uma pessoa fazer isso, e justamente quem sofre mais preconceito da sociedade é capaz de demonstrar tanta afeição pelo próximo, inesperadamente. Eles são capazes de nos surpreender, e, na sociedade em que vivemos, a programação da vida dia após dia pode mecanizar até mesmo o que deveria ser espontâneo, como os sentimentos. Quem não segue estritamente os preceitos vividos na sociedade atual, demagoga, politicamente correta, seja por uma condição genética ou não, nos mostra um lado que por vezes esquecemos existir, a espontaneidade, que não é crime, mas por vezes, aparenta ser.

E foi isso que me tocou, na aula de Genética, às cinco da tarde.

Quem diria.

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Degradê celino

Na minha época de colégio conheci um garoto fino, educado, intuitivo, na medida. Aos poucos ele ia tornando-se mais, e gradualmente, tornava-se menos, e até que às vezes desaparecia, para n'outro dia reaparecer, e todos achavam isso um pouco estranho, mas ele era adorável, e logo todo mundo simpatizava novamente com ele.

Estava entre todos nós, gostava de se inteirar dos assuntos, olhos vívidos, tão vívidos, que chegava a alcançar quase tudo... e, depois, como quem cansa, ele se afastava, se omitia, mesmo que ali permanecesse - não chamava tanta atenção, seu humor era mais selvagem, mais denso e frio. Mas sempre estava ali para quem o procurasse e quisesse ver.

Havia dias, geralmente no inverno, dias nebulosos, em que ele parecia escorrer por entre nós. Poderíamos pensar que estava ali, mas, já que nossos olhos não o alcançavam, ele dava uma escapulida, e tornava-se o que não podemos imaginar, afinal de contas, suas possibilidades eram muitas, apesar de não sabemos quais, exatamente. 

De uma sabedoria e inteligência ímpares, indecifráveis, que não se espera encontrar em ninguém, quanto mais em um adulto jovem. Escutava muitas histórias, ouvia muito de muita gente... Apesar disso, sua boca era um túmulo, e fofoca não o transpassava. ( Na verdade, ele acabava por ouvir tudo mesmo, ainda que não dissessem diretamente a ele, talvez, isso, até hoje).

Então, certa vez, fui espiar para entender melhor o que ele era, pois, curiosa como sou, notei muitas peculiaridades naquela criatura e, para a minha surpresa, meu amigo de um salto criara asas! Voou, voou, voou, tão alto que, quando pude perceber, ele se transformara em céu, um céu em degradê, de fim de tarde, bonito, mas escurecido, tonalizado gradativamente com azul acinzentado, azul escuro, azul marinho, azul claro, amarelo e abóbora, até o morro. Quis saber mais sobre ele, só que não pude mais alcançá-lo, estava longe...

Desde então, não mais o vira.

Só sei que Celino estará sempre aqui, de ouvidos bem abertos, de braços abertos, todo acalourado como sempre, querendo saber de tudo e com o olhar curioso de como quem tem um mundo inteiro pra saber como cuidar. 

E foi assim que se deu origem à lenda do menino Degradê Celino, que nunca mais por aqui foi visto, mas quem o viu, todo dia, à noite, dá uma espiadinha no céu, na esperança de revê-lo em sua forma de menino.


(Imagem retirada do Google )